quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Tampão verde por pagar há dois anos

Governo expropriou a 49 cêntimos por m2 e adquiriu terrenos florestais nos montados de Santo António e São Roque. O incêndio chegou primeiro que o pagamento

Há dois anos que os terrenos estão abandonados: carqueja e silvado minam os montados

O Governo Regional expropriou, há cerca de dois anos, centenas de parcelas de terrenos florestais nos montados de Santo António e São Roque, para integrá-los no chamado 'tampão verde'. Chamou a si a propriedade de 332 hectares do domínio privado por entender que estavam mal geridos. A maioria ardeu e ainda nem foi paga.

O Executivo tomou a posse administrativa há seis meses, renovando a declaração de utilidade pública. Lançou a empreitada de 'repovoamento florestal das zonas altas do concelho do Funchal', mas os trabalhos só deverão ir para o terreno em princípios do Outono.

Entretanto, pouco ou nada mudou nos montados, além da carqueja, urzes e silvado que cresceram, sobrando a manta morta que foi minando o solo abandonado, servindo de rastilho para os incêndios. Além de agastados com os montados agora reduzidos a cinzas, centenas de proprietários expropriados estão a 'arder', sem ver pago um cêntimo dos 49 prometidos por cada metro quadrado, há cerca de dois anos.

A última grande aquisição de parcelas de terreno florestal aconteceu há seis meses e permitiu ao Governo adicionar ao 'tampão verde' mais 332 hectares, totalizando 6 mil hectares. O Executivo propunha-se indemnizar os expropriados dispondo de uma verba global de 674 mil euros - o que dá uma média de 49 cêntimos por metro quadrado - mas o pagamento nunca mais se efectivou.

De resto, este processo de expropriação não tem sido uma batalha fácil. O braço-de-ferro litigioso acabou por chegar aos tribunais.

Um dos proprietários com quem o DIÁRIO falou, membro da Associação de Regantes da Levada da Serra de Santo António e um dos proprietários do 'Montado das 69 Partes' - que engloba uma área de 38 hectares no alto da Barreira -, lamenta a oferta do Governo, considerando o valor uma ofensa ao património privado e aos antepassados que, até há bem pouco tempo, faziam da lenha uma actividade rentável e, sobretudo, mantinham as florestas limpas. "Devia haver uma padaria com forno a lenha por freguesia. Assim não havia incêndios", apontou, agastado com o cenário cinzento que agora prolifera nas zonas altas.

A representar "várias centenas de proprietários" está o advogado Ricardo Vieira. Contactado pelo DIÁRIO, o mandatário explica que não está em causa apenas a contestação dos valores da indemnização mas a efectivação do contrato, que carece de mútuo acordo entre todas as partes envolvidas.

O Governo notificou sobre a intenção de expropriar, publicou a resolução do conselho de governo (n.º 68/2010), declarando a utilidade pública das parcelas de terreno, suas benfeitorias e todos os direitos a elas inerentes constantes da lista de 'repovoamento florestal das zonas altas do concelho do Funchal'. Fez as vistorias e avançou com a posse administrativa, conforme a lei confere.

O advogado diz que "tudo isso é possível antes de avançar para os tribunais". Porém, a área expropriada só estará efectivamente nas mãos do Governo por uma de duas vias: através da adjudicação por contrato com a assinatura dos cerca de 400 privados, entre heréus e donos das parcelas; ou por adjudicação dos terrenos à entidade expropriante pelo Tribunal.

Faltam Acessos, limpeza das matas e vigilância
"No Curral Velho, Estrela, Barreira, Lombo dos Aguiares, Pomar Miradouro, faz falta um ou outro guarda florestal para estas zonas altas andarem mais protegidas". A opinião é de um dos mais experientes membros da Associação de regantes da Levada da Serra de Santo António, com quem o DIÁRIO falou.

Na Barreira, a população teme dar o nome, mas tem a evolução das florestas bem presente na memória. Este, que é um dos 300 regantes da localidade, conhece cada nascente e galeria de água dos montados de Santo António como os traços da palma da sua mão. E a convicção é que "hoje está tudo abandonado": o silvado tomou conta das veredas ao longo das levadas e a faúlha amontoa-se na sombra da carqueja e das urzes que crescem entre o pinhal e eucaliptal. Sente o coração destroçado ao ver árvores seculares destruídas pelo incêndio.

Já no Pico do Cardo, a maioria dos 400 expropriados do montado (113 hectares) apoia a aquisição pública e reflorestação dos terrenos descampados. Mas não compreendem porque razão o Governo não fez ainda corredores corta-fogo por exemplo até à Ribeira da Lapa, de forma a facilitar o acesso aos bombeiros.

QUERCUS DIZ QUE PROJECTO NUNCA PASSOU DO MAPA

Hélder Spínola, dirigente da Quercus, não conhece qualquer intervenção na zona do 'tampão verde', desde que o projecto teve início, há nove anos. O ambientalista diz mesmo que os 6 mil hectares adquiridos pelo Governo Regional não tiveram outro mérito, além da demilitação no mapa das parcelas que passaram a ser propriedade pública.

"Sendo algo que o governo chamou a si, é inconcebível que não tenha sido feito nada, bem ou mal, e que a acção se tenha resumido simplesmente a delimitar no mapa a área do tampão verde, sem uma reposição do coberto vegetal autóctone, sem gestão florestal para reduzir a carga de biomassa para assim evitar a propagação de incêndios com grandes proporções, nem vigilância para detectar focos de incêndio de modo a que possa ser atacado de imediato", manifesta ao DIÁRIO.

O ambientalista nota que a intenção do Governo seria implementar um projecto de requalificação florestal semelhante àquele que foi desenvolvido pela Câmara com o Parque Ecológico do Funchal (PEF). Mas, se por um lado, este último conseguiu cumprir as metas como a recuperação do coberto indígena ou a substituição de plantas invasoras, "o projecto do tampão verde, desde que nasceu em 2001/02 que não se lhe conhece nenhuma intervenção além da delimitação no mapa". Constata ainda que, "fora do PEF, toda aquela área não tem tido gestão nenhuma, à excepção de uma ou outra iniciativa conjunta com as associações e os moradores na limpeza de poios, uma situação de educação ambiental pontual e não de gestão florestal".

Hélder Spínola defende uma estratégia florestal que aposte na prevenção e não em "medidas de fim de linha", como a criação de novos acessos. "Não se fala em evitar ignições de incêndios, em ter meios aéreos para combate directo, volta-se ao mesmo de fazer mais estradas que também acabam por ser usadas pelos incendiários". O ambientalista diz que a "estratégia do deixa arder" ficou bem patente na forma vertiginosa como que se propagou o fogo entre o Poiso e o Pico do Areeiro ou ainda no PEF, servidos por "acessibilidades quase perfeitas".

"Não fizemos nada porque não pudemos"
Instado pelo DIÁRIO, Manuel António Correia explica que o Governo não avançou ainda com a limpeza das matas, a criação de acessibilidades ou a reflorestação, conforme está previsto no projecto do 'tampão verde', porque "o regime jurídico normal numa propriedade privada impede as entidades públicas de intervirem no espaço físico, mesmo que seja por bons motivos".

"Não fizemos nada porque não pudemos. Só recentemente é que a posse administrativa se concretizou e as acessibilidades em Santo António estão paradas muito à custa disso", nota o secretário regional do Ambiente e dos Recuros Naturais, referindo-se aos atrasos decorrentes da identificação dos proprietários e herdeiros, muitos ausentes e com dificuldades em comprovar o registo cadastral das múltiplas parcelas.

O governante diz que o Governo tudo fez para impedir o desleixo nas áreas florestais e que só são expropriadas os casos de má gestão florestal, identificados através de uma vistoria prévia. "Já fizemos muitas aquisições por acordo, outras por arrendamento que permitem a posse e executar os trabalhos de reflorestação e outros em que não houve acordo e partimos para a figura mais extrema (declaração de utilidade pública) mas que demonstra bem a energia, a vontade e a pressa do Governo em fazer esse projecto de reflorestação", sustenta o governante.

"Mostram que o Governo estava certo na identificação que fez: definir a área como estratégica para a RAM e na posse privada não funcionava para esses fins", observa. "Penso até que foi um dos primeiros casos de expropriação por razões ambientais, para defesa do património natural e da segurança das populações", sublinha o secretário.

Convicto de que "estamos no caminho certo", Manuel António Correia assegura que "esta política vai continuar e é para ser estendida para outros concelhos", como as zonas altas da Encumeada, Campanário, Paul da Serra, "onde também já existem terrenos públicos, porque tornam ainda mais evidente a posse pública que não é um fim em si mesmo".

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