sábado, 26 de fevereiro de 2011

'Não se aprendeu nada com a tragédia da Madeira'

O primeiro aniversário da catástrofe de 20 de fevereiro de 2010, que matou meia centena de pessoas, ficou marcado por um cordão humano de 2 mil manifestantes, contra o aproveitamento do aterro provisório para mais uma megaobra de Alberto João Jardim. Conversámos com Raimundo Quintal, 56 anos, um dos proponentes daquele movimento, que acusa o Governo Regional de repetir os erros do passado.

Asneiras urbanísticas pioraram as enxurradas de 20 de fevereiro de 2010. Um ano depois, o que se fez para prevenir um novo desastre?

Perdeu-se uma oportunidade para repensar o Funchal. Era tempo de se ter um plano para as zonas altas, onde ocorreram os deslizamentos de terras que causaram as mortes, e ter coragem para não permitir que se volte a construir as casas destruídas e acabar com outras que estão em zonas de risco. Podia alojar-se essas pessoas na zona histórica da cidade, que está hoje sem população. Outra grande falha tem a ver com a gestão das grandes ribeiras. Na de Santa Luzia, por exemplo, há um caso catastrófico entre os 300 e os 600 metros de altitude: uma empresa de extração de pedra, com capital regional, que continua a ocupar o leito de cheia da ribeira, potenciando inundações.

Quer dizer que não se aprendeu nada?

Não só não se aprendeu como ainda se piorou a situação.

Há quem viva aterrado com a perspetiva de novas enxurradas. Essas pessoas têm razões para o medo que sentem?

As pessoas que ainda moram em zonas afetadas têm de ter muito receio. É fundamental que sejam tiradas daí. Que passe a ser um chão sagrado, onde morreu gente.

Ajudou a organizar um cordão humano, contra a transformação do aterro provisório [feito há um ano, para colocar o entulho das enxurradas] num cais e numa zona de lazer. Porque considera que esta obra não deve avançar?

Numa primeira fase, concordei que se tivesse escolhido a praia para fazer o depósito provisório da pedra e da areia transportada pelas ribeiras. Simplesmente, esses inertes foram ficando. Continua a destruir-se a paisagem lindíssima da Madeira para extrair mais pedra, quando se podia usar a que está ali. Foi por isso que aderi a esta petição e ao cordão humano. Esta foi a primeira vez que os madeirenses vieram para a rua sem haver um artista convidado ou espetadas - vieram em defesa da baía do Funchal.

Será o primeiro passo para uma cidadania mais ativa dos madeirenses?

Aquele cordão humano foi um primeiro passo para que a Madeira caminhe para um paradigma diferente, em que o "ser" vale mais que o "ter" e em que os valores da Natureza são defendidos.

É legítimo que aquela obra seja feita recorrendo às verbas que o Estado atribuiu para reconstruir o que as enxurradas destruíram, através da chamada Lei de Meios?

A Lei de Meios permitiu transferir para a Madeira dinheiro - que é de todos os portugueses - como forma de solidariedade para recuperar o que foi estragado. É abusivo gastar essa verba numa obra megalómana. Estamos a lançar uma nova petição para recuperar a praia junto à Avenida do Mar, para que se torne num cartão de visita da cidade do Funchal, coisa que será muito mais barata do que a tal obra - cuja estimativa inicial é de 40 milhões de euros. Mas, como as obras aqui costumam custar o dobro do previsto, estou convencido de que 80 milhões não chegam.

BI De relance Investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, Raimundo Quintal é, há muitos anos, um dos madeirenses mais ativos na defesa do património natural da Ilha e um dos mais respeitados críticos das políticas do Governo Regional. (Visão)

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